Data de publicação: 26/02/2008
Só quem quer ser cego ou alinha por um oportunismo ditado pela carteira ou pela carreira, é que não vê o descrédito a que grande parte da dança portuguesa chegou nos últimos tempos.
Não se trata de uma afirmação gratuíta, alarmista ou reaccionária – e, muito menos, sectária pensando em qualquer tipo de dança em particular - mas tão somente de uma constactação séria e consistente do que se passa nos palcos de Norte a Sul do país.
E daquilo que os artistas portugueses conseguem – ou melhor, não conseguem - levar ao estrangeiro.
Basta ver quem insiste em suar e apresentar trabalhos que se identifiquem com o público e enche teatros, como o Coliseu de Lisboa (Grupo Momix) ou leva mais de 10.000 pessoas ao Pavilhão Atlântico e, recentemente, esgotou o Campo Pequeno (Joaquín Cortés), ou quem nem o Teatro Camões ou o auditório principal da Culturgest consegue encher – quase todos os grupos portugueses.
Podíamos falar da estranha programação do Centro Cultural de Belém, organismo dependente do Ministério da Cultura, em que as companhias de dança que vão para o Grande Auditório são estrangeiras e os portugueses têm que se contentar com o Pequeno. Ou, pior ainda, se confinam a um espaço, nas catacumbas do edifício, com uns míseros 50 assentos, denominado “black box”. Assim é fácil os espectáculos esgotarem só com a família dos coreógrafos, amigos dos bailarinos e conhecidos dos promotores!
E da Fundação Gulbenkian, que durante 40 anos fez mais pela dança que o próprio Estado e, de um dia para o outro, praticamente, deixou de programar dança remetendo-se a uma discretíssima actividade na organização de seminários (localizados) para artistas “emergentes”, como se a pedagogia e o ensino das Artes agora também funcionasse em sistema de “fast food”.
E para completar a paisagem lisboeta, o vetusto São Carlos – que voltou a engolir a Companhia Nacional de Bailado (CNB) através da criação do OPART (Organismo de Produção Artística) – em vez de programar no seu palco a sua própria companhia, a CNB, e outras apropriadas ao seu público e características e dimensões da sala e palco, teve a ideia peregrina de convidar apenas duas coreógrafas contemporâneas, em dois fins de semana, já na presente temporada.
No resto do país, que ainda é pouco mais que paisagem... hoje já com muitos teatros municipais entregues a pessoas sem qualquer visão e competências técnica e artística, destaca-se o Porto com a Fundação de Serralves. Poder-se-ia referir o notório esforço daquela casa em programar dança marcadamente contemporânea (quantas vezes, mesmo, na vanguarda do experimentalismo), contudo, a componente portuguesa é, praticamente, inexistente. E quanto ao efeito que essa programação tem tido no público, se formos avaliá-la pelo trabalho da única companhia com um projecto continuado existente na “capital do Norte”, o Balleteatro, certamente que deixa muito a desejar!
Mas, seguramente, o pior problema que atravessa a dança portuguesa, situa-se ao nível da subistência das companhias e dos grupos ditos “independentes”.
Nos últimos anos têm encerrado a actividade mais companhias e grupos do que surgido novas estruturas dignas desse nome.
Muito mal vão as coisas quando uma “invenção tripeira” que dá pelo nome de “Companhia Instável” tem não só o apoio regular das entidades governamentais como também de certas pessoas que se revêm num tipo de projecto cujo nome já, por si, é enganador. Ao contrário do que acontece nos outros países, instáveis são todas as nossas companhias, e o resultado tem sido lamentável.
Se a ideia de escolher um coreógrafo nacional ou estrangeiro e fazer audições para juntar à sua volta um grupo de bailarinos, durante umas semanas ou meses, e depois tudo descartar, parece aliciante do ponto de vista organizativo, evitando deveres como o pagamento de encargos com a Segurança Social e outros – e engrossando o já muito desproporcionado número de “intermitentes” - os resultados artísticos que uma companhia sólida e com um trabalho regular, não tem, nem pode ter, comparação com este tipo de experiências e “fait divers” com muita publicidade e algum fogo de artifício.
Portugal está cheio de coreógrafos de animações pontuais (e até alguns que quase só trabalham para a televisão) que não se queixam de falta de projectos, para além de coreógrafos ditos “profissionais” sem trabalho e bailarinos-mulher-a-dias. Naturalmente que o nível técnico e artístico da nossa dança tem descido perigosamente e é muito claro que os públicos se têm vindo a ressentir desse facto.
Já para não mencionar que a infeliz expressão “nova dança portuguesa” se tornou numa espécie de anátema que caiu sobre os artistas contemporâneos e, muito raramente, não obsta a que o grande público troque o conforto do seu lar por espectáculos que de dança têm muito pouco ou nada para oferecer. Até essa lacuna já os espanhóis perceberam ao descobrir o caminho para muitos teatros portugueses mandando muitas das suas companhias com espectáculos, melhores ou piores, de flamenco,
É bem verdade que cada vez mais aquilo que se vê hoje nos palcos e a que se chama Dança se parece menos com Dança, no sentido de movimento organizado e físico, o que, aliás, se passa, por exemplo, também com as artes plásticas. Mas o que não se pode é esperar que num país em que a formação artística fora dos grandes centros é ainda muito deficitária, venha a ter públicos como o da Galeria Zé dos Bois, uma espécie de D. Quixote de uma certa “movida” lisboeta, outrora radicada no Bairro Alto.
E de quem é a culpa deste estado de coisas? Obviamente de todos.
A começar pelos artistas que são pouco exigentes para consigo e para com o Estado ao qual pagam impostos e que, em muitos casos, desejam ardentemente ser mais conhecidos no estrangeiro que na sua própria terra.
E a acabar nos políticos, pouco sérios e ainda menos cultos, que não veêm na Arte mais do que um ramalhete que sempre fica bem a alegrar qualque cerimónia oficial mas que, cinco minutos depois, se esquecem que é essa mesma arte, em qualquer país, aquilo que lhe dá identidade e perdura através dos séculos.
Desde os mais visíveis e perenes inquilinos do Ministério da Cultura até ao mais obscuro vereador da Cultura de uma câmara municipal do Portugal profundo, todos têm responsabilidades neste longo e interminável processo.
Também não se deverá deixar de escurtinar o percurso - e assacar as respectivas responsabilidades - do IPAE, que posteriormente se chamou IA e, recentemente, mudou o nome para Direcção Geral das Artes. Não nos esqueçamos que se trata de uma instituição directamente dependente do Ministério da Cultura, com dinheiros vindos dos nossos impostos, destinada a apoiar o desenvolvimento das artes teatrais, plásticas e outras, e que tem feito um caminho muito sinuoso, pouco claro e altamente discutível, nos anos mais recentes.
Neste insuportável cinzentismo, alguém com grandes responsabilidades nos destinos da nossa Cultura, Isabel Pires de Lima, possivelmente em jeito de provocação, deu-se ao luxo de afirmar, em entrevista a uma publicação de grande tiragem, que não existe “Arte Portuguesa”.
Nas próximas eleições, políticos destes, bem podem ir buscar votos ao estrangeiro para serem eleitos.
António Laginha