Data de publicação: 08/04/2008
Ao assistirmos ao espectáculo de Abril da Companhia Nacional de Bailado (CNB) – o primeiro programado, a sério, pelo seu novo director artístico, Vasco Wellenkamp – somos levados a questionarmo-nos se estará a dança portuguesa subsidiada pelo Estado condenada a viver entre o revivalismo inconsequente e um experimentalismo estéril ancorado na não-dança?
Era bom que não!
Com um programa constituído por três peças – duas reposições, “Cantata” e “Linha da Frente”, e uma criação, “Lento para Quarteto de Cordas” – o universo do director da CNB parece ser tão limitado que vai de si próprio a Mauro Bigonzetti (que já trabalhara para a CNB e para o extinto Ballet Gulbenkian/ BG) passando por Henry Oguike, que no passado Wellenkamp contratou para a sua pequena Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC).
A pergunta que a seguir, naturalmente, se impõe é que, se há vontade de recuperar peças emblemáticas do BG para o reportório da CNB, porque não fazê-lo à custa de trabalhos de criadores portugueses? Depois de se ter encomendado a Olga Roriz obras originais e remontado peças suas vindas da Gulbenkian, muito haverá a “desenterrar”. Inclusivamente uma ou outra peça "maior" do próprio Wellenkamp, obras de mérito de Carlos Trincheiras e de outros artistas vivos ou já desaparecidos. Parece ser para isso (e para outras coisas mais) que existe uma companhia dita “nacional”. Obviamente também para encomendar obras novas a criadores nacionais… e estrangeiros.
Reportando-nos às obras apresentadas, poder-se-á dizer que, apesar da novidade ser pouca – ou nenhuma – todos os bailarinos em cena se mostraram com bastante energia e muito empenho. Numa companhia com 75 elementos, com um programa destes, três quartos ficaram na plateia. O “desperdício humano" é tanto que, mesmo com uns a fazerem uns “apontamentos coreográficos” na ópera “Os Contos de Hoffmann” no Teatro de S. Carlos, há bailados com, nada menos, que três distribuições para ocupar os bailarinos que têm à frente uma temporada com um reportório, no mínimo, anémico e com pouquíssimos espectáculos! Se foi para isto que se criou o OPART - juntando a dança à ópera para agilizar e rentabilizar meios - bem pode o Ministério da Cultura limpar as mãos à parede!
Uma obra escura
“Linha da Frente”, com quatro músicos no palco (instrumentistas de cordas) para interpretar Chostakovitch e seis bailarinos à sua frente, passa-se muito no escuro ou debaixo de luzes “brancas” salpicadas por uma ou outra mancha avermelhada. Oguike concebeu, para a sua companhia sedeada em Londres, uma peça exigente do ponto de vista físico em que os artistas batem com os pés pesadamente no chão, andam apressados, executam movimentos rijos e sincopados, correm e sucumbem no solo – em linhas frontais – tentado acompanhar os contornos percussivos da partitura. No final, como que enfrentado uma linda de fuzilamento, todos se confrontam com uma sensação de impotência e a peça resolve-se na claudicação de corpos cansados e ofegantes.
Mais do mesmo
A única estreia da noite, o dueto “Lento para Quarteto de Cordas” com música de Anton Webern assinado por Wellenkamp, apresenta um cenário dominado por um cubo vazio num espaço amplo em que Peggy Konik e Rui Alexandre se esforçam por dar vida. Com laivos de algum sentimentalismo os bailarinos voltam ciclicamente a determinados pontos espaciais criando alguma tensão na "musicalidade" da composição coreográfica.
Mas tudo é tão previsível nesta obra, desde o movimento aos figurinos, que o espectador mais familiarizado com a obra do antigo coreógrafo do BG não pode deixar de percorrer toda a peça com uma pergunta na cabeça - onde é que já se viu isto… e quando. A resposta é simples e imediata: no BG e na CPBC, e muitas vezes! Como é sabido, durante muitos anos – os “de ouro” da Gulbenkian - Wellenkamp inspirava-se bastante nas obras de Kylian e, nos últimos dez, basicamente, tem-se limitado a copiar-se a si próprio, alterando a música, as luzes, as roupagens e a cenografia - quando esta existe.
Festa luso-italiana
Quanto a “Cantata” – o bailado mais dançado pelo BG nos derradeiros anos e já apresentado pelo Mundo fora, pelo Atterballeto - trata-se de uma pérola rara de alegria e festa. Ainda que com alguma patine do tempo, é uma peça tão contagiante que nunca deixa qualquer plateia estática ou os bailarinos indiferentes. Os corpos soltos e o carácter eminentemente lúdico das várias danças são um desfio para quem sente o movimento como um dom, ao mesmo tempo, divino e pagão.
Criada para o Porto 2001, “Cantata” mexe connosco de um modo indelével. A espantosa e visceral música do quarteto (italiano) feminino Assurd - que interage com os bailarinos no palco - brota tão dançável e ao mesmo tempo tão genuína e partilhável que é um verdadeiro deslumbramento para os corpos e para as almas