Morreu de cancro, na madrugada de 12 de Agosto, aos 57 anos em São Paulo (Brasil) a bailarina, coreógrafa e directora de companhia, Ivonice Satie.

“É uma perda terrível para a dança brasileira, porque a Ivonice era uma pessoa muito empreendedora. Se lhe disessem, vamos fazer um espectáculo na próxima semana, ela concordava de imediato. Dava muito valor à vida e o palco era a sua vida", afirmou à imprensa Liliane Benevento, diretora do Studio 3 Espaço de Dança, onde Satie trabalhou até ser internada.

Filha de imigrantes japoneses, Ivonice Satie Yoshimatsu Fagundes, iniciou seus estudos na Escola Municipal de Bailados de São Paulo, aos nove anos, tendo debutado profissionalmente no Balé da Cidade de São Paulo, onde permaneceu 14 anos.
Estreou-se na companhia há 40 anos e fez parte do primeiro corpo de baile, quando, sob direção de Johnny Franklin, o grupo dançava, basicamente, o reportório clássico, antes das mudanças introduzidas por Antonio Carlos Cardoso, em 1974, que conduziram o Balé da Cidade para os caminhos da dança contemporânea.

“Fico muito feliz em poder dizer que faço parte da primeira geração de bailarinos que envelheceu dançando no Brasil. Eu vivi as várias fases do bailado, da dança clássica à moderna, do momento em que as sapatilhas foram postas de lado e começámos a dançar de sapatos de ténis ou de pés nus”,
 

Porém, foi dentro de casa, com o pai, que ela aprendeu os primeiros passos da dança porque “ele era apaixonado por música, embora a minha mãe nunca tenha gostado de dançar. Desde muito pequena que ele me ensinou passos de dança”, confessou Ivonice, que era a filha do meio entre três irmãs. Mesmo com o incentivo dentro de casa, ela foi a única que seguiu a carreira de bailarina na família. “Eu sou muito desorganizada e péssima em cálculos e não consigo ver-me a trabalhar como administradora, que é a profissão de uma das minhas irmãs. Da mesma forma que elas também não se interessaram em ser bailarinas como eu. Foi uma questão de escolha, mas o que importa é que elas sempre me deram muito apoio”, afirmou a artista.

A menina, que desde pequena adorava ensinar os amigos da escola a dançar, cresceu e tornou-se uma bailarina que tinha prazer em se envolver na produção dos espectáculos e sempre dava palpites durante os ensaios. “Acho que essa minha característica fez com que, desde muito cedo, eu fosse solicitada para coordenar algumas peças. Com 25 anos dançava e já era assistente de coreografia do Balé da Cidade”, explicou Ivonice.
 

Em 1982, a sua carreira sofreu uma inflecção quando fez o papel da chinesa Connie Wong, na versão brasileira de “A Chorus Line”, a convite de Walter Clark.

Entre os anos de 83 e 89 Ivonice Satie fez parte do elenco do Ballet du Grand Théâtre de Genève, a convite do coreógrafo argentino Oscar Arraiz.
“Eu fiquei muito feliz quando percebi, na Suíça, que a minha grande escola, realmente, tinha sido o Brasil. Os latinos mostravam uma qualidade artística e uma percepção musical que não eram naturais para os europeus e os americanos”.

De 93 a 99, foi directora artística do Balé da Cidade onde criou a Companhia 2, para bailarinos veteranos.
“Quando voltei para a companhia, ela estava quase completando 30 anos - em 1999 - mas não estava preparada para dar resposta aos profissionais que tinham mais tempo de casa. Havia bailarinas de 16 anos dividindo o mesmo repertório com profissionais de 45. Por mais qualidades que tenha uma artista aos 15 anos, a experiência profissional é diferente de outra com o triplo da carreira. Às vezes, nem é tanto a preparação, mas o desejo é diferente. Eu achei que era importantíssimo criar a Cia.2 do Balé de São Paulo, um grupo de veteranos. É o espaço em que, juntos, eles assumiriam o compromisso de difundir a dança de uma forma diferente e divulgar a possibilidade de um novo conceito social em torno desse trabalho. Eu até costumo dizer que tive quatro corpos: um quando era criança, um na adolescência, outro quando fui mãe e depois um corpo de 50 anos".
 
Ao longo da sua carreira Satie arrecadou vários prémios no Brasil e ainda nos concursos de Nyon (Suíça), de Varna (Bulgária) e de Jackson (Estados Unidos da América), com o bailado “Shogun”.
“A minha família tem uma história de tradição dos samurais. O meu ditian estudou o kembu, a dança dos samurais, o iaidô, a arte da espada, e eu treinei essa dança com o meu avô durante muitos anos, foi por isso que nasceu 'Shogun'. É a obra mais importante da minha vida, porque ela foi criada há cerca de um quarto de século e ainda é interpretada em várias companhias. E fico ainda mais feliz porque é um trabalho que eu fiz em homenagem ao meu avô, exactamente por tudo o que eu aprendi com ele”.

Ivonice Satie trabalhou como coreógrafa e professora convidada em companhias em França, Alemanha, Croácia, Suíça, Estados Unidos da América e Portugal.

Nos anos oitenta e noventa esteve em Portugal para dar aulas no extinto Ballet Gulbenkian a convite, respectivamente, de Jorge Salavisa e Iracity Cardoso, os directores da companhia.
Em 2003 coreografou a peça “Passion”, com bailarinos deficientes, para o grupo madeirense “Dançando com a Diferença” sedeado no Funchal.

Entre 1993 e 2003 trabalhou junto do município de Diadema, na área metropolitana de São Paulo, onde criou a  Companhia de Danças de Diadema e, em 98, o Grupo Roda na Mão, para bailarinos portadores de deficiência física.

De 2003 a 2005 foi directora artística da Companhia de Dança do Amazonas (de Manaus) e, até há pouco, co-directora da Companhia Sociedade Masculina, de São Paulo.

Ivonice Satie considerava que a sua descendência japonesa influenciou decisivamente o seu trabalho. “Durante umas férias no Japão pude ter um maior contacto com a cultura daquele país, o que me deixou muito emocionada. Mas, ao mesmo tempo, eu tenho a felicidade de ter nascido no Brasil, porque  o meu lado japonês está em completo equilíbrio com o brasileiro. A minha dança tem muito dessa mistura. Ao mesmo tempo que tenho uma disciplina muito grande, também sou muito impulsiva. Estou muito grata por  estar ligada a uma cultura tão forte a ponto de ser, às vezes, até kamikaze. Já me disseram que eu tenho também um lado gueixa. As pessoas dizem que o meu jeito doce e ao mesmo tempo forte de corrigir os bailarinos é típico da mulher japonesa”.
E concluiu, com a seguinte reflexão, a sua motivação criativa: Para coreografar preciso estar apaixonada. Não sou uma coreógrafa que só vive da coreografia. Não preciso de fazer uma obra por semana ou de 15 em 15 dias, porque, felizmente, não vivo (financeiramente) da criação. Criar uma obra é um momento de muita inspiração, um momento de encontro, de troca, de simpatia e de muito querer. Esse conjunto de factores faz com que eu crie bem e supere todas as dificuldades que surgem durante o processo de produção. E é nas horas de dificuldade que se é obrigado a buscar inspiração e criatividade, que só são possíveis se se estiver envolvido com o trabalho.

Homenageada por colegas que dançaram, em Março, coreografias suas ou inspiradas no seu trabalho, Ivonice Satie lutava há meses contra um cancro.