Data de publicação: 11/05/2010
CELEBRAR O 29 de ABRIL EM PORTUGAL? SÓ ACENDENDO VELAS!
Dia de festa para os amantes de dança, o 29 de Abril evoca um nome seminal da história do espectáculo – o coreógrafo e teórico francês Jean-George Noverre (1727-1810). No dia em que se assinala o seu nascimento, o Instituto Internacional do Teatro (UNESCO) convencionou calendarizar o Dia Mundial da Dança, conferindo uma especial (e abrangente) visibilidade à Arte inspirada pela musa Terpsicore.
Em Portugal apenas em 1993, se comemorou pela primeira vez a nível nacional, a citada efeméride. Quase duas décadas depois, não só a dança se transformou drasticamente no visual, na forma, nas técnicas utilizadas e, sobretudo, nos conteúdos… como deu um imenso salto a nível de popularidade.
Nunca antes se falou tanto desta Arte - sobretudo na televisão, essa caixa tão milagrosa quanto perversa que nos mete diariamente o Mundo dentro de casa – e nunca o seu efeito democratizador foi tão acentuado. E, curiosamente, ao mesmo tempo, tão prejudicial. É que, a título de exemplo, qualquer pessoa sem formação artística, académica ou vincada – e reconhecida - experiência profissional com resultados palpáveis (ainda) hoje pode abrir uma escola de dança em qualquer ponto do país, como, na mesma medida, qualquer indivíduo levianamente escreve ou opina publicamente e, pasme-se, até se permite servir de jurado em importantes concursos públicos ou popularuchos programas televisivos, de credibilidade mais ou menos duvidosa mas de audiência garantida!
Em contrapartida, as publicações sobre dança a nível da reflexão teórica e, mesmo, os escritos panfletários ou de divulgação, são, em Portugal, quase nulos e o espaço a nível dos “media”, praticamente desapareceu.
Se pensarmos na popularidade de estilos como o hip hop e as danças desportivas/ de salão – tendo-se enterrado irremediavelmente a popular dança jazz e sub-estilos como, por exemplo, a badalada e sexy lambada - ver-se-á que, actualmente, os mais praticados são, essencialmente, despojados de qualquer enquadramento artístico. Resumindo-se quase tudo a uma espécie de movimento ginasticado, quantas vezes completamente superficial, no qual se injecta uma pesada componente competitiva. Os recorrentes campeonatos regionais, nacionais e mundiais de danças desportivas e as populares (sobretudo entre jovens) “batalhas” de hip hip, são exemplos desta curiosa situação.
A este estado de espírito não é alheia uma verdadeira invasão nas escolas de “dançarinos”, muitos a tirar para a meia idade e que zelam tanto pela sua saúde mental como física, apostando numa prática marcadamente “social”. Em que as bailarinas, quase sempre, se apresentam com uns fatos inenarráveis, os homens algo afectados e ambos cheios de tiques e posturas exageradamente exibicionistas. Para além de um exército de “putos” do hip hop (com as suas diversas variantes) sempre muito “fashion” no trajar e com uma energia transbordante, que se atiram à dança com a pujança da idade, frequentemente, sem pensar nas nefastas consequências de um treino quantas vezes forçado e que, não poucas, toca o perigoso!
O “fogo do Oriente” protagonizado pelo exotismo das danças de outros mundos teoricamente acessível a todas as mulheres, é também outro vector que perpassa a chamada dança de entretenimento, quantas vezes com (excelentes) fins terapêuticos.
Recuando uns poucos de anos, a um período que sucedeu ao de grande expansão da já citada dança jazz e da descoberta das técnicas pós-modernistas (designadamente a improvisação de contacto) e da dança-teatro germânica, facilmente se perceberá que, à custa de tanto se ter difundido certas “ideias de facilitismo” ancoradas numa espécie de “democracia do corpo” e de um total desprezo por técnicas fisicamente muito exigentes e não acessíveis senão a profissionais de alto gabarito e a quem os teatros estavam destinados, se criou no público a falsa ideia de que hoje, em termos profissionais, vale, mesmo, tudo. Ainda que à “velha” dança, à falta de melhor, se tenha contraposto a… “não dança”!
Assim, num espaço diametralmente oposto ao ocupado pelos “dançarinos” de hip hop e de danças de salão, encontra-se uma minoria (elitista e, muitas vezes, pretensamente intelectual) que, ostensivamente, adoptou a improvisação como modo aparentemente elaborado de envolver intérpretes e criadores numa simbiose nem sempre conseguida a nível de espectáculo. Em vez de um meio, como outro qualquer, tornou-se me si mesma um fim apostando-se, até à exaustão, no “corpo desarticulado, animalesco, espasmódico, informal e até algo neurótico”. É que à força de tanto se despir a dança de artifícios”, algumas das suas mais importantes componentes estão completamente pervertidas, contra a vontade dos espectadores que frequentemente, apontam o tédio como o aspecto mais relevante das performances e a falta de rigor e exigência dos intérpretes como um complemento fatal nos eventos que, despudoradamente, se afirmam em contínua evolução (work in progress) para justificar, quantas vezes, a mais que óbvia inabilidade para produzir obras duradouras e com verdadeira substância artística.
O pós 25 de Abril
Quem, em Portugal, presenciou o estimulante período pós “25 de Abril” de 74, recordar-se-á da paisagem dominante: uma companhia de bailado de muito bom nível, o Ballet Gulbenkian (BG), para além de um conjunto moribundo (o Verde Gaio), uma escola periclitante no Conservatório Nacional e uma escassa meia dúzia de estúdios particulares de qualidade mais que duvidosa, que pouco ou nada produziam. A importação de bailarinos era um facto assumido e a sina dos artistas portugueses com ambições verdadeiramente profissionais era a emigração ou a luta por um lugar no restrito espaço em que o sol podia brilhar.
O Verde Gaio, que atravessou várias fases e, ao contrário do que muita gente crê, chegou a fazer um sucesso assinalável, sobretudo no estrangeiro, foi (injusta e deliberadamente) deixado asfixiar. Sobre as suas cinzas criou-se, em 1978, a clássica Companhia Nacional de Bailado (CNB), um projecto com base em manobras políticas de pessoas com forte influência pessoal, e a efémera Companhia de Dança de Lisboa (1985), sobre o esqueleto do êxito de um grupo amador de dança jazz, liderado por Rui Horta.
Ao mesmo tempo as escolas de dança multiplicaram-se anarquicamente e até se criaram duas de ensino a nível superior, se bem que o nível geral não terá aumentado muito em qualidade!
Salvaram-se todos aqueles que completaram a sua formação no estrangeiro e voltaram para um país em que ainda são os “curiosos” e os “chicos espertos” os que singram enveredando pela área política, a qual verdadeiramente estrangula as decisões artísticas com o beneplácito de instituições marcadamente politizadas, em que sobressai tão jovem quanto suspeita e de má fama Direcção Geral das Artes (DGA).
Como é do conhecimento geral, a muito necessária criação de uma rede de cine-teatros foi um dos poucos projectos políticos de visível alcance, ainda que a médio prazo, tendo surgido no consulado de um dos poucos ministros da Cultura – senão o único - que teve algumas ideias para dar visibilidade à própria Cultura. Esse projecto teve um papel importante não só no vector da exibição mas também algum na área da produção mas, infelizmente, sem qualquer intervenção palpável na melhoria da pedagogia da dança no país. Talvez porque a esmagadora maioria dos teatros de província estão, obviamente, nas mãos da câmaras municipais e a sua gestão tem sido, sistematicamente, entregue a pessoas pouco habilitadas e com pouca ou nenhuma formação cultural que, não poucas vezes, vão parar à Cultura porque é a área que serve para “compor o ramalhete” em qualquer vereação que se preze!
Pena que se não tenha copiado (bem) a paisagem francesa, já com uma longa tradição e sólido gosto pelas artes, consubstanciada em duas dezenas de centros coreográficos regionais; para além de se ter gerado legislação adequada e apoios estatais para a criação de escolas privadas que pudessem contribuir para vitalizar o rarefeito e medíocre tecido pedagógico.
Infelizmente, uma situação bastante depauperada permitiu toda a espécie de oportunismos o que levou a que o sistema se começasse a perverter aparecendo, como cogumelos, programadores de dança. Uma nova classe com um impacto – ainda que discreto – muito poderoso, tendo, a sua esmagadora maioria, saído da esfera política e não exibindo o mínimo de preparação artística para tais tarefas, acabado por ter, simplesmente, apoiado e promovido a mediocridade e, tantas vezes, ignorando artistas sérios e competentes.
A resposta é simples: muito pouco… de interessante!
Basta ver o marasmo em que as temporadas de dança caíram e quantos são os artistas portugueses que se produzem e são conhecidos em Portugal e no estrangeiro.
Depois de um já referido período de grande entusiasmo (em que o país entrou numa certa euforia dançante) e em que alguns artistas – de um modo previsível e até saudável – se propuseram recusar certos padrões, ainda que de reconhecida qualidade como foi o caso da “proposta Gulbenkian”, e um estatuto profissional que encerrava alguma segurança vinda de uma instituição que serviria de escola a várias gerações de artistas, a poeira foi assentado.
Porém, na maioria dos casos, aos altos padrões de qualidade a nível técnico e de produção a que a companhia de dança da Gulbenkian nos habituou, em vez de propostas exemplares que primassem pela criatividade e liberdade de expressão indo além do que o conservadorismo permitia e tocando aspectos sociais e políticos até então discretamente evitados, enveredou-se pelo subterfúgio do facilitismo e de uma verdadeira indulgência artística, em alguns casos temperados com grandes doses de oportunismo.
Quem convive regularmente com a dança contemporânea portuguesa sabe como as suas audiências são reduzidas – quase sempre constituídas por jovens com avultadas doses de curiosidade – pois muita gente existe que é taxativa ao afirmar “já dei para esse peditório”! Por vezes, nem com bilhetes oferecidos, o cidadão comum parece disposto a sair do conforto do seu lar, deixando os seus DVD’s preferidos e livros por ler, para assistir a espectáculos que para além de, em termos de movimento nada lhes dizer nada ainda os incomoda com temáticas sombrias ou desnecessariamente elaboradas, para além de apresentarem repetidamente aspectos como a nudez gratuita, barulho ensurdecedor, sofisticada tecnologia, movimento pedestre, alienação e texto falado. Quase se pode afirmar que quanto mais expressivo é o palavreado, e quanto mais roupa interior se exibe, frequentemente, menos atractivo é o movimento e menos sólidas as ideias!
Como é que se poderá pretender que o nosso trabalho de dança seja requisitado e apreciado no estrangeiro se aqui já é o que é? E por isso não admira que venha o Observatório das Actividades Culturais – que, tanto quanto se sabe, se limita a fazer estatísticas e posteriores “observações” – afirmar que só 7% dos espectáculos lusos saíram para o estrangeiro. E deles nem sabemos a fatia que corresponde à dança mas tudo leva a crer que nesse campo a percentagem é bem menor.
Se olharmos para além de Badajoz, para as muitas companhias de “baile flamenco” genuinamente espanholas (incluindo artistas mais ortodoxos, mas de enorme impacto, como é o caso de um Israel Galván, ao lado de projectos mais comerciais) que se apresentam por esse Mundo fora sem quaisquer apoios estatais, verifica-se que, ao contrário da maioria dos criadores e bailarinos portugueses contemporâneos, o que eles exportam é um trabalho original e de inquestionável qualidade.
A verdade é que, num campo diametralmente oposto, a Companhia Nacional de Bailado (CNB), companhia oficial portuguesa, pouco de positivo tem apresentado em termos de criatividade e, na falta d e melhor, um reportório com cunho minimamente português. As outras, as pequenas companhias, essas, muitas vezes, nem conseguem qualquer apoio do Ministério da Cultura (MC), através da DGA e do Instituto Camões, e, muito menos, de mecenas privados. Desde que mataram (sem anestesia) a “galinha dos ovos de oiro” em termos nacionais e internacionais, leia-se BG, grupo que onde se apresentava nunca nos deixou ficar mal, aproximámo-nos de um doloroso deserto que apenas serve o interesse de alguns, porque “em terra de solos quem tem subsídio quadrienal da DGA, é rei”!
Quando hoje se pergunta a um qualquer indivíduo “Você acha que sabe dançar?”, a resposta pode muito bem ser: Dançar? Não só sei dançar (a solo, para não haver concorrência em palco) como ensino e coreografo… já para não dizer que também desenho cenografia e figurinos, escrevo a dramaturgia das minhas peças, trabalho em produção (nas minhas obras e também produzo jovens bailarinos que precisam de apoio através da minha associação financiada pela DGA), para além de fazer crítica de dança e escrever ensaios sobre estética e pesquisa sobre o trabalho de corpo!
Onde antes se procurava Arte, hoje exulta-se com … pretensiosismo e atrevimento, porque muitos espaços teatrais escancaram as suas portas a pseudo-artistas, salientes que vão dos franco-atiradores aos filhinhos dilectos e mimados da DGA! Aos enteados cabe, hoje, a tarefa de levar ao colo essa tal dança portuguesa contemporânea. Os que um dia são incensados por certos jornais e meses depois acabam por cair no mais completo dos esquecimentos. Onde antes se via trabalho (95% de transpiração e 5% de inspiração) hoje vislumbra-se, frequentemente, uma grande dose de oportunismo, quantas vezes disfarçada de, audácia, humor e recusa – mais ou menos gratuita - de modelos do passado que nem sequer dominam para poder, conscientemente, poder recusar.
Os mesmos argumentos – “gimmicks” / truques para marketing e publicidade - que deslumbram e entusiasmam os programadores que apenas têm dois olhos (um para o umbigo e outro para a conta bancária), promovendo a mediocridade e promovendo-se eles próprios ao criar uma imagem de casulo e uma legião de dependentes. Assim, tem se vindo a afastar, de uma só penada, qualquer crítica séria e construtiva. Inclusivamente daqueles que os empregam – os serviços públicos, designadamente autarquias e ministérios -, que lhes dão de comer e nem sequer ousam questionar, tão ilustres “orientadores de gosto” e sapiências tão esclarecidas em matéria de artes performativas.
Depois de um período de euforia, que correspondeu a dinheiros mal distribuídos, já vai parecendo, ao comum dos portugueses, que os seus artistas da dança deveriam voltar à realidade, nem que para isso fosse necessária a extinção da DGA, para além de uma efectiva e séria reestruturação da CNB, criando-se uma dúzia de centros coreográficos regionais e uma comissão artística que co-adjuvasse e fiscalizasse o trabalho de um director artístico da CNB escolhido – ente os melhores – por concurso.
Era previsível que a sociedade de consumo viesse a transformar drasticamente a noção de cultura e, por arrasto, a face da dança. Com a subjugação às leis da (desenfreada) economia, hoje, tudo tem que ser rentável e a “cultura-mundo” - enunciada pelos filósofos Lipovetsky e Serroy - acabou desorientando o público e, naturalmente, muitos dos artistas. A integridade no trabalho e uma certa humildade nos comportamentos deixaram, também ao nível da dança, de ser valores respeitáveis e o “sentido da arte” separou-se irremediavelmente da ideia de legado e da nobre transmissão pela via dos mestres. Essas noções foram substituídas por um vaidoso, acelerado e desenfreado individualismo suportado, em grande parte, pela frieza das novas tecnologias e dos progressos da ciência em matéria de informação.
A ideia de “indústria” relativamente à arte da dança – que em Portugal, pura e simplesmente não existe – se trouxe algumas vantagens a nível financeiro e de visibilidade de uma arte que, pela sua intrínseca natureza é muito frágil, também contribuiu para alguma desumanização de uma actividade que, por natureza, não deixará nunca de depender dessa miraculosa simbiose entre corpo e espírito do artista.
Paralelamente ao engenho demonstrado por muito criadores na aproximação das novas tecnologias à dança, os trabalhos com indivíduos deficientes e jovens de bairros problemáticos e famílias desestruturadas - quando tocados pela integridade e convicção - são o (bom) reverso da medalha. Veja-se o trabalho da Batoto Yetu (projecto baseado nas raízes dos seus bailarinos reconhecido nos Estados Unidos da América, Angola e Portugal) e a pioneira companhia inglesa CanDoCan, cujo alto nível artístico e técnico pouco tem a ver com os muitos dos projectos que por nasceram em Portugal – Madeira, incluído - como cogumelos e que em muito pouco favorecem os próprios destinatários. Já a chamada dança “comunitária”, com fins artísticos e sociais desinteressados, apresenta parcos resultados a nível nacional. Pelo contrario, serviu de veículo a alguns arrivistas que usaram a “fórmula” para chegar a certos patamares de promoção artística e social que lhes interessavam muito mais do que qualquer fim artístico que, na realidade, devido a uma evidente falta de preparação e formação artística, não tinham condições de atingir.
Estrelas de 2010
Vejamos, como epílogo, alguns exemplos de criadores que “brilharam” (e uma delas até foi premiada, ainda que por um júri mais ou menos suspeito) em 2010.
Aldara Bizarro, Madalena Victorino e Rui Horta, “estrelas” do CCB e da Culturgest, cuja visibilidade no país é muitíssimo pálida. Apenas o primeiro, juntamente com Vera Mantero, tem (muito boa) visibilidade no estrangeiro.
Aldara Bizarro, que se mexe muito bem no meio, mas cujas obras sempre deixam bastante a desejar, apresentou-se, já em 2010, a solo na Culturgest. Como intérprete está longe de ter o necessário carisma. Aliás, hoje, bailarinos-coreógrafos com talento e impacto quase só mesmo Vera Mantero, quando dança… e não quando canta ou se refugia num elemento pantanoso denominado “performance”!
Como coreógrafa, Aldara, desde a sua peça que foi à Europália em 91, “Marias e os Papelinhos”, pouco ou nada de relevante produziu, porque, estranhamente, o seu trabalho nunca deu o necessário “salto”.
Madalena Victorino que há anos vem apostando numa fórmula mista que dá pelo nome de dança “para comunidade” e "para não profissionais” - até já vimos convencidos políticos a fingir que sabem dançar em peça suas -, tem sido recorrentemente subsidiada pelo MC e se apresentado a um nível, e com as pretensões, dos que se reclamam verdadeiros profissionais. Não só lucrou visivelmente por estar ligada, anos a fio, a uma instituição como o CCB - em que era responsável pela programação infantil - como hoje, praticamente, trabalha por “encomenda” da Artemrede – que lhe assegurou, à partida, a entrada em 15 teatros - ou a própria DGA.
Já Rui Horta, como artista associado do CCB em 2010 (colocado no mesmo patamar de uma artista mundialmente famosa como é a pianista Maria João Pires) produziu um espectáculo, “As Lágrimas de Saladino”, cujo impacto sonoro foi inversamente proporcional ao criativo! Tendo o MC vindo a pagar-lhe para ter um tecto em Montemor-o-Novo e outro em Lisboa, sofisticados meios de produção e publicidade exemplar, Horta deu-se ao luxo de escolher um bizarro elenco: músicos de uma banda filarmónica – tão na moda como os ranchos folclóricos – e um grupo de bailarinos totalmente estrangeiro! Se isto é desprezo pelos artistas nacionais, não devia ser subsidiado, e se não há portugueses com qualidade para o nível exigido por Horta então que se detectem as causas? Não anda o coreógrafo do Espaço do Tempo e dirigente da Rede (e muitos outros) a receber da DGA também para fazer formação em dança contemporânea à margem das escolas oficiais? Então a culpa só pode ser do mau ensino praticado nos projectos “artísticos” que o Ministério da Educação financia e dos projectos “pedagógicos” em que o MC (e também a Fundação Gulbenkian) despeja somas consideráveis de dinheiro para tão parcos resultados!
A dança e a Literatura
Em resumo, ver uma suposta bailarina que depois de passar três meses em “residência artística em NYC”, paga com verbas da DGA saídas dos nossos impostos, a fazer o pino para ler a lista telefónica de Manhattan, poderá, para alguns, ser visto como um desaforo e (até) provocação difíceis de engolir mas para outros um verdadeiro acto de criatividade intelectual. Mas, para além dos que saem a meio entediados com este tipo de espectáculos, é habitual o esperado grupo de “admiradores” - não mais que uns 50, se for na Black Box do CCB - que gritam euforicamente no final dos eventos, lado a lado com os “outros” que acham sempre fantástico qualquer exercício mais ou menos inusitado porque como nunca viram espectáculos de dança dignos desse nome, toda a espécie de dança/performance é sempre tida como novidade, mesmo quando já quase tudo (nesse âmbito) foi feito, por exemplo, nos anos 60 nos EUA!
Dois excelentes exemplos deste estado de coisas são programação da supra citada “Black Box” do CCB, com uma plateia reduzida e facilmente esgotável, ou para o palco da Culturgest (em que os espectadores quase são pendurados em andaimes metálicos), que fazem as delícias da “inteligentzia” lisboeta e justificam a “dança de excelência” saída dos projectos apoiados pelos júris da DGA, mesmo estando a anos luz das necessidades e do genuíno desejo de partilha que os espectadores deste país anseiam… até porque se têm revelado equívocos e devaneios que lhes têm vindo a sair dos bolsos!
O percurso dos artistas citados é, perfeitamente, demonstrativo do beco sem saída a que a dança “independente” chegou em Portugal. Apenas Rui Horta, que é fortemente apoiado pelo MC com vários projectos em simultâneo, será, possivelmente o único que se tivesse que viver dos direitos autorais não passava fome. E o mais curioso é que, com excepção de Francisco Camacho, Clara Andermatt e Vera Mantero nenhuma das estrelas da “nova dança portuguesa” provou, em qualquer companhia, que teria o nível necessário para ganhar a vida como intérprete!
Perante tal cenário será de trazer à coacção o exemplo da literatura e verificar-se-ão abismais diferenças de resultados, de modus operandi e comportamentos, porque não só nos dá mostras de grande vitalidade, como é exportada e os autores vivem do seu trabalho. Veja-se o caso de Gonçalo M. Tavares – que escreveu o” O Livro da Dança” - e muitos outros escritores da sua geração. Trata-se de jovem autor muito prolífero que teve uma bolsa de criação do MC mas, depois disso, começou a viver do seu trabalho, ao contrário do que se passa na dança. O eternamente “jovem” coreógrafo e bailarino João Fiadeiro, que há anos tem uma curiosa companhia formada por ele próprio, tem sido, desde sempre, subsidiado com fundos públicos. Era bom que, casos como este, fossem exemplarmente avaliados pela DGA, em termos de produtividade (e até qualidade) para que pudéssemos saber o preço a que sai ao erário público cada bilhete para um dos (escassos) espectáculos daquele “one man show” e seus “seguidores/protegidos”.
Em contraste, mas não menos expressivo é o trabalho do octogenário José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, que continua a produzir regular e consistentemente. Na dança, infelizmente, em Portugal nunca existiu (e nem existe) um mercado, como já existe na literatura, nem muito menos figuras tutelares de gabarito com a projecção e a produção da de alguns escritores seniores.
As razões serão muitas, já que se trata de um universo distinto, mas as mais importantes são, seguramente a qualidade. Deve-se acrescentar que no que toca à dança a recorrente falta de nível em termos de produção e, sobretudo, o voluntário e completo afastamento da realidade e do público que muitas vezes, os nossos bailarinos-coreógrafos parecem desdenhar, tem marcado negativamente as relações entre ambos.
Todos deveriam assumir que na sua arte não existe nada mais utópico, mas mais necessário, que uma sólida e integra preparação artística. Essa tão incentivada e subsidiada geração espontânea levou a dança a um beco sem saída.
Entre o (nobre) bailarino palaciano e o (casual) de feira da ladra há uma imensa paleta de artistas integros e trabalhadores que é preciso respeitar. Entre o rigor ditactorial e o extremado dirigismo dos coreógrafos do passado e a ostensiva partilha entre criador e intérprete do presente (já que nem todos, ainda que muito o desejem, podem assumir ambos os lados da barricada) ou a improvisação desregrada, como meio e fim e resultado de workshops desgarrados que regularmente, resultam em "works in progress", existe, certamente uma linha criativa com miolos e que aborde temáticas sociais e interventivas, na mira de proporcionar prazer, reflexão e, porque não, admiração no público. A imitação de esquemas que repetem até à exaustão imagens de um quotidiano penosamente sensaborão, movimentos não identificáveis com qualquer tipo de "academismo” buscando uma "normalidade" desprovida de qualquer substância e interesse performativo e a redução do espectáculo à fórmula "faz o que tens a fazer sem exibir o resultado", são perfeitas falácias se aplicadas à própria vida. É a subversão do próprio teatro e, sobretudo, das regras da sobrevivência da grande Dança. Num mundo altamente mediatizado e concorrencial só os que dependem de subsídios para se apresentar perante franjas muito reduzidas de público é que se podem dar ao luxo de impor as suas próprias regras esperando que alguns jornais "de referência" elogiem e promovam as suas propostas.
“Frequentemente deprimente, desconchavada e desenxabida” a nova “dança” portuguesa não pára de nos surpreender.
Se bem que, na maioria das vezes, pela negativa!