Data de publicação: 16/04/2008
Enquanto se fingia a manutenção de certos valores estéticos, Fernando Pessoa (1888–1935) apreende na sua obra incertezas e inquietações que se manifestavam nos espíritos iludidos. Talvez por essa e muitas outras premissas, o expressivo e algo misterioso "universo" literário, daquele que é por muitos considerado um dos maiores poetas do século vinte, tem sido um campo a explorar nas artes portuguesas... e não só! Apenas em 1942, e após a sua morte, quanto Adolfo Casais Monteiro organiza uma antologia em dois volumes da sua obra, é que Luís de Montalvor e João Gaspar Simões iniciam a publicação das suas "Obras Completas" em onze volumes. Assim, o autor de "Mensagem" (publicada em 1934) faz sentir a sua influência, tornando-se a principal figura das tendências modernistas portuguesas. A sua obra revela, de forma justa, a desagregação das "velhas certezas" demonstrando o vazio que adquirira a veracidade. Reminescente da tradição dramática, Pessoa disseca o seu sentir e pensar, sob a forma dos seus 19 heterónimos, de diversas nacionalidades e culturas, ("Fernando Pessoa, Sixty Portuguese Poems", de F. Quintanilha editado pela University of Wales Press, 1973) demonstrando o seu génio, para além das suas faculdades poéticas, na procura da coerência do indivíduo, na inquietação decorrente dos mistérios do universo e numa peculiar visão da heróica história dos Portugueses. No que diz respeito à dança, a sua obra tem sido fonte de inspiração para coreógrafos nacionais e estrangeiros que têm vindo a apresentar alguns trabalhos com interesse, tendo em conta o propósito que abraçaram. Nos anos 60, Águeda Sena, que terá sido a primeira artista da dança a debruçar-se sobre o "enigma pessoano", traz à jovem televisão Portuguesa (RTP) o projecto "Poesia em Movimento". Do conjunto de 25 poetas a que, então, pretendia dar relevo, consegue que dez poemas sejam, após acertos forçados, aprovados pela Censura para exibição pública. Nessa dezena de poemas/programas, encontramos um dedicado ao heterónimo Alberto Caeiro, o qual ecoa num espaço amplo enquanto os corpos viajam nas palavras e as exprimem como se as encarnassem. Todo o projecto teve um enorme impacto na altura, o que revelou, cabalmente, a visão artística da coreógrafa e a actualidade e importância do autor. Nos anos 80, com obras como "Mar Sem Fim" – apresentada por um grupo carioca, o Estúdio Lurdes Bastos, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e sem grande impacto (não se encontraram quaisquer críticas do espectáculo na imprensa portuguesa) - e "Olha Daisy: muitos Parabéns!" - assinada por António Laginha e apresentada em 12 de Junho de 1988 no Largo de São Carlos em Lisboa, onde o poeta nasceu, criado especialmente para as comemorações do primeiro centenário do seu nascimento, com música do grupo português Telectu e das Vozes Búlgaras -, terá ficado a vontade de criar espaço para novas interpretações. Na última década do século vinte, em três anos consecutivos, os palcos da Fundação Gulbenkian serviram de enquadramento a trabalhos de dança inspirados na magnífica escrita de Pessoa.
Em 1991, a francesa Catherine Diverrès, apelidada de coreógrafa da intranquilidade pelo jornal Le Monde, tomando como referência directa o "Livro do Desassossego", traz a Lisboa "Concertino" (com música de Eiji Nakazawa). Citando um texto da própria coreógrafa, este trabalho poderia ser "um bailado sobre uma reunião de família ou então sobre a ligação de vários indivíduos para uma história comum. O dia e a noite de núpcias, um enterro, talvez o sonho de cada uma dessas personagens em que uma se encontrava no sonho da outra. Não sabemos quem está morto ou quem está vivo. Os acontecimentos de uma vida desfilam, como um cortejo de sensações, de imagens de uma infância nostálgica. A sensualidade dos perfumes e das cores que se soltam duma natureza próxima, a violência e o absurdo dos pesadelos". Parece, assim, que o porquê do movimento do bailarino (que Pina Baush afirma ser a sua verdadeira preocupação) ganha conteúdo, mesmo que na prática o efeito tenha ficado aquém do esperado ou do desejável, acentuando, como refere o crítico teatral Manuel João Gomes, "as dúvidas existentes relativas ao género dança-teatro" e resultando "Concertino", na opinião de Pinto Ribeiro, numa "obra plasticamente evocativa do propósito expressionista transformando--se, no decorrer do espectáculo, numa sucessão de estampas coreográficas a que falta, por vezes, uma razão necessária". No ano seguinte, em 1992, a Companhia de Pierre Deloche estreia em Portugal, país que o coreógrafo afirmou ser a sua pátria adoptiva, a peça "Tejalem". Tomando como ponto de partida a magia que o envolveu antes mesmo de conhecer a língua portuguesa e a coragem de cantores de tradição ancestral (música: Luís Pedro Faro e cantos tradicionais do Alentejo, pelo grupo coral da Vidigueira "Os Vindimadores"), procurou criar um bloco monolítico que encerrasse não só o carácter mítico e messiânico de "Mar Português", mas também a complementaridade entre homens e mulheres, expressa nas "longitudes/latitudes, profundezas/extensões, ancoragem/viagem, nau/espuma ondulatória. Como o encontro de dois mundos, de dois planetas". Assim, num espaço simbolicamente associado à roda do Zodíaco, percorre-se o caminho das doze estações/horas/cantos modulados pela constante flutuação entre cantores e bailarinos.
O antropólogo André Lepecki encreveu então: "o que vi cheirava a morte: morte de um mundo ainda coeso face à superficialidade espectral, vazia e asséptica da fragmentação ‘fin-de-siècle’. O coreógrafo não se apercebeu disso, a produção para a Sala Polivalente não foi mais que um acto de crime cultural". Nas palavras do jornalista António Melo, o resultado foi algo "ofensivo à dignidade do grupo coral em palco, confundindo-se no conjunto o Alentejo com a epopeia marítima portuguesa". Duas opiniões, por si só, reveladoras. Em 1993, Mary Fulkerson, co-directora e fundadora do Centro para a Nova Dança de Arnhem, Holanda, encontra a mesma sala remodelada e aí apresenta "Fausto", fruto de uma oficina de duas semanas com bailarinos portugueses. Parece que a heteronímia foi capaz de "confundir" vinte bailarinos, mesmo quando a sua concentração e esforço não pôde ser negada. Na altura, António Laginha escreveu a propósito da obra: "(...) o texto de Pessoa apareceu abordado de um modo não literal, fragmentado, enraizado em personagens mais ou menos imaginativas e vestidas com roupas que mais parecem desenterradas de um qualquer baú de família, como aquele que, periodicamente, nos tem brindado com inéditos do poeta da ‘Presença’. (...) na pele de figuras tão díspares como Cristo, Goethe, Maria e Ophélia (Queiróz), os jovens artistas embrenharam-se em histórias desconexas e metafóricas, utilizando movimentos do quotidiano (...) mais parecendo vinte personagens à procura de um autor".
Lisa Coimbra